Esta seção talvez devesse se chamar Keiko Suenobu, já que estarei falando de dois mangás da autora e não somente uma obra específica. O fato é que esta talentosa mangá-ka consegue retratar muito bem o drama das adolescentes que sofrem bullying, assim como a alienação das famílias, a insensibilidade dos professores e, claro, a sociedade machista e hipócrita que empurra muitas meninas para experiências sexuais precoces, para logo em seguida puni-las pela sua "falta de pudor". Os mangás de Suenobu não são para aqueles que querem ler somente histórias amenas e superficiais, é preciso estômago, pois ela não nos poupa de conhecer a dor e os sentimentos autodestrutivos que podem ser sentidos pelas adolescentes.
ESTILETES SÃO PREJUDICIAIS À SAÚDE 1: VITAMIN
Vitamin é um mangá de um volume, então, falar sobre ele não é complicado. A história conta o drama de Sawako Yarimizu, uma garota normal de 15 anos, que depois de ser enganada e usada pelo namorado, que a chantageia de todas as formas para que ela aceite fazer sexo com ele (*onde e como ele deseja*). Descoberta em uma situação constrangedora, a fofoca se espalha e ela passa a ser perseguida e humilhada pelos colegas de todas as formas possíveis. Afinal, é ela que se comportou como uma qualquer e foi vista fazendo sexo na escola.
A família não compreende sua depressão e vontade de não retornar à escola. Já o professor orientador, que está mais ou menos ciente do tipo de assédio e violência que a menina está sofrendo (bullying), diz simplesmente que "hoje em dia as crianças são muito fracas". A sociedade baseada em honra e vergonha não admite fraquezas, e o professor não pode mostrar compaixão pela menina. As agressões vão aumentando, ela se mutila com estiletes, adoece, mas a arte liberta e Sawako consegue descobrir que o mundo lá fora é muito maior que a sua escola. Contar mais seria dar spoilers, só digo que recomendo. Vale pela volta por cima e pelo elo que a menina estabelecerá com a mãe. Nota 10.
Vitamin foi traduzido pelo grupo Storm in Heaven. O que me atraiu no início foi a arte, lembrou um pouco a de Peach Girl, aliás, ambos os mangás sairam da Betsu-fure. Vitamin é de 2001. E mostra que uma autora competente pode contar uma excelente história em somente um volume. Vitamin é uma violenta crítica ao sistema educacional e à família tradicional japonesa. Parece ser claramente uma autobiografia, tamanha a força dos sentimentos contidos dentro da história. A autora não nos poupa de mostrar a decadência física da menina, cuja saúde se deteriora a olhos vistos, chegando a se viciar (*daí o vitamin*) em remédios e se mutilar. Vitamin foi publicado na Itália em 2005 pela Panini.
ESTILETES SÃO PREJUDICIAIS À SAÚDE 2: LIFE
Mas a carreira de Keiko Suenobu continua e Life é o seu atual sucesso, estando sempre entre os mais vendidos do Japão na semana de seu lançamento. Não posso falar muito sobre a história, pois só li o primeiro volume e as scanlations foram interrompidas com o licenciamento nos EUA e na Itália. Life, que iniciou em 2002, atualmente (novembro/2007) conta com 16 volumes e também é publicado na revista Betsufure.
A protagonista de Life é Ayumu, a menina está com 15 anos e vive o chamado "inferno dos exames" que aterroriza a maioria dos estudantes japoneses. Aluna mediana, ela não consegue nem passar perto das altíssimas notas tiradas por sua melhor amiga, Shinozuka ou Shiii-chan. Quando descobre que Shinozuka pretende fazer o teste de admissão para Nishidate, uma escola de elite, Ayumu decide tentar a sorte e estudar o máximo que pode para não se separar da amiga. Quanto mais se aplica nos estudos, mais Ayumu percebe que pode ser mais que mais uma na multidão, já Shinozuka, que não cansava em deplorar as notas da melhor amiga e dizer que a ajudava nas tarefas por pena, se sente ameaçada. Como professora, já vi isso várias vezes, é mais fácil parecer um gênio quando você está cercada de alunos ruins.
Conforme o tempo passa, a amizade das duas começa a vacilar, pois Shinozuka passa a ver Ayumu como rival. Já a protagonista cai em depressão, mas não desiste, pois acha que se ambas forem para Nishidate tudo voltará a ser como antes. Mas o fato é que até os colegas de turma começam a hostilizá-la e o incrível acontece: ela tira uma nota mais alta do que a de Shinozuka nos exames de admissão! Como a nota de corte foi mais alta do que o esperado, somente Ayumu consegue ir para a escola dos sonhos de sua antiga melhor amiga que a trata como traidora e rompe completamente os laços com ela. Ao invés de ficar feliz, Ayumu cai em profunda depressão, sente-se culpada, chora sem parar, pensa em suicídio, se mutila com estilete (*nunca deixe um desses ao alcance de uma personagem de mangá realista*), mas agora é tarde e ela tem que enfrentar sozinha uma escola exigente e cheia de alunos e alunas que se consideram muito inteligentes e não mostram nenhuma simpatia por ela.
ERA RUIM, MAS SEMPRE PODE PIORAR
Tudo isso aconteceu em meio volume. Foi rápido, não? Agora Ayumu está em Nishidate e continua deprimida. Ela usa mangas compridas para esconder que se mutila, pois suas cicatrizes são horríveis. Só que uma menina muito alegre e popular, Manami Anzai, decide se aproximar dela. Manami é rica, tem muitas amigas e namora um dos melhores alunos da escola, Katsumi Sako. Ela parece feliz, mas se sente muito insegura quanto ao amor do rapaz. Um rompimento entre os dois quase leva a menina ao suicídio e Ayumu a salva e decide ajudar a salvar o relacionamento do casal.
Primeiro erro: Katsumi Sako é um pervertido, violento e manipulador. Ele sofre violência por parte do pai que o espanca e desconta sua frustração nos mais fracos, especialmente, mulheres. Ele descobre que Ayumu se mutila e decide chantageá-la. A vida da menina se torna um inferno. Por outro lado, as amigas de Manami acham que Ayumu está tentando tomar Katsumi e a vida da protagonista se transforma em um duplo inferno. Manami e suas amigas passam a persegui-la, agredindo-a de todas as formas. Ayumu percebe então a pessoa desequilibrada que Manami é, mas é tarde demais, ela está só e mesmo a professora responsável pela turma, Wakae Toda, fecha seus olhos.
Manami é rica e mimada e manipula todos, usando de todas as formas de violência. Mesmo seu namorado não está livre, pois ele é obrigado a namorar com ela pelo pai. O relacionamento é excelente para a família do rapaz, um casamento com uma moça mais rica tornaria tudo ainda mais cômodo. Ayumu é um alvo fácil, mas Manami ambiciona atingir outra garota, Miki Hatori, que é linda, solitária, excelente aluna e muito segura de si. Hatori não Sá mole para Manami e, de quebra, ainda se torna amiga de Ayumu, é o início da subida do inferno, mas, claro, não será tão fácil.
EXAGERADO? COM CERTEZA. RUIM? NÃO, DE FORMA ALGUMA!
O sucesso de Life no Japão é evidente, tanto que a série foi transformada em dorama na segunda metade de 2007. Foram 11 episódios que mesmo amenizando muito do mangá, ainda assim produziram muita polêmica no Japão. E, por que isso? Simplesmente a série expõe a hipocrisia das famílias e do sistema escolar que permite que o bullying (Ijime), uma das formas mais cruéis de violência, corra livremente dentro da sociedade.
Bem, por conta do dorama, meu interesse por Life aumentou. Tinha lido somente o que foi traduzido em inglês, um volume, nada mais e fui atrás dos volumes raw. Não leio japonês, portanto fiz uma leitura visual mais do que qualquer coisa. Vi todos os 16 volumes lançados até agora, e vou ser direta, gosto de Life, mas o excesso de exagero compromete e muito o mangá. Gostei muito de Vitamin, ali, acredito que Suenobu Keiko fez uma narrativa muito equilibrada dos danos do bullying e mostrou uma protagonista disposta a dar a volta por cima, já em Life, que é centrado no fenômeno em si, acredito que a coisa está escapando um pouco do controle. Lendo a crítica do Shoujo Manga Outline, elas elogiam o mangá - coisa que eu também faço - mas dizem exatamente o que eu pensei: o bullying é muito bem retratado visualmente, mas não aprofundado, discutido. Nisso Life difere de Confidential Confessions.
Pergunto-me se em Life a apresentação de uma violência gráfica sem limites simplesmente para alimentar o desejo voyeur das leitoras. O mangá é forte! O que vão fazer com Ayumu - ou outra personagem - da próxima vez? Acho isso uma armadilha e pode se tornar cansativo. Os volumes 3 e 4 foram particularmente fortes nesse sentido. Duas cenas me chamaram a atenção. Na primeira, Katsumi Sako, o garoto que curte bondage e estuprar meninas, vai até a casa de Ayumu, levando flores. O rapaz é bem recebido pela mãe da menina, entra no quarto de Ayumu, se tranca com ela, tenta violentá-la, ela resiste, eles brigam, ela grita, quebram o quarto inteiro e, enquanto isso, a mãe da garota está na cozinha feito uma autômata fervendo água. A mãe não escuta nada (*no dorama ela dá uma saída*), não se espanta com o quarto quebrado, a situação da filha e se despede candidamente do criminoso. Em que mundo ela vive?
Em outra cena, a gangue de Manami arma uma emboscada para Ayumu dentro do laboratório, atiram centenas de agulhas sobre ela, seguram a menina e tentam fazê-la comer as agulhas. De novo, ninguém ouve o quebra-quebra dentro do laboratório, como a mãe de Ayumu não ouviu em casa. São surdos os japoneses?! Além disso, a menina que está com a grande quantidade de agulhas na mão não se machuca. Faltou realismo de verdade, pois só quem se machuca é Ayumu. Enfim, a violência vai num crescendo. Se tudo aquilo acontecesse com uma pessoa só, ela quebraria, suicídio na certa. E com tanta violência sofrida, você se dobraria a chantagens bobas? Mas ela se dobra. Somente no volume seis que é quando ela conta aos professores e à mãe das violências, demorou demais, e ninguém, salvo uma professora novata, Masako Hiraoka se importa.
Demora ainda um pouco, mas ela começa a dar a volta por cima com a ajuda de Hatori e de um outro garoto, Sonoda Yuuki. Fiquei com o pé atrás, mas não desisti de Life. Pulei do volume 6 o 12, fiquei muito impressionada com a evolução do traço da autora. É um volume belamente desenhado, com uma arte bem cuidada, dinâmica, muito diferente dos primeiros passos. Nota 10. É maravilhoso ver uma artista se tornar cada vez mais competente.
Outra surpresa: Ayumu parece feliz! Os três primeiros capítulos são centrados em Ayumu e Hatori. Agora ela usa somente munhequeiras para disfarçar as cicatrizes, deixou de se mutilar com estilete, está usando alcinha e não mangas compridas. Legal, pensei e há ainda um capítulo em que ela visita o museu com Sonoda. Mas há uma menina no hospital. Com perna quebrada e toda arrebentada, Ayumu e a amiga tinham ido visitá-la. Mas eis que no final, uma garota, não sei se Mana, invade o hospital e tortura a menina, e quase a atira da janela. Quase quebra o quarto inteiro, a menina grita. Ninguém aparece, ninguém parece ouvir. E é um hospital De novo a violência parece exagerada, gratuita, mais como um exercício para estimular as leitoras.
Descobri o problema de Life, ou melhor, o grande problema: Manami. A personagem é tão exagerada que compromete a história em certos momentos. Quem pratica bullying geralmente é alguém comum, mas Manami reúne qualidades excepcionais, age como psicopata, e em alguns momentos parece possuir super-força e habilidade. Palavra, ela me lembra os youkais de Inu-Yasha. Mas é essa a vilã de Life. Há o que fazer? Não. Mas a série vicia, as personagens, fora Manami, são verossímeis, e não me sinto capaz de abandoná-la apesar dos pesares.
FUNDAMENTAIS
Como disse, Life na net, só o primeiro volume em inglês ou os outros raw. O mangá é um sucesso tão grande que está sendo rapidamente licenciado em vários países. Daí, decidi comprar em inglês mesmo pela Tokyopop. Na Itália, a série sai pela Panini e isso me dá esperanças. Olhando o volume 16, a não ser que haja uma reviravolta muito absurda, eu diria que a série caminha para o fim e um final de respeito. Concluindo, digo que seria muito bom se um dos dois mangás saísse no Brasil, afinal, precisamos de shoujos de qualidade e mostrar com sensibilidade o dia-a-dia das adolescentes é algo que certamente faria diferença em nossas bancas. Fora isso, esses titulos são fundamentais para despertar a reflexão sobre um fenômeno presente em 100% das escolas brasileiras, o bullying. Torço para que a Panini - acho que é a única opção - decida trazer um dos dois, ou os dois títulos para o Brasil.